Canabidiol é o único remédio que
funciona para tratar algumas pessoas doentes. Substância não é vendida
legalmente no Brasil.
Plantar maconha é ilegal no Brasil. Mas uma substância extraída da folha
da maconha, chamada Canabidiol, serve como remédio. E esse remédio é o único
que funciona para tratar algumas pessoas doentes. Produzir Canabidiol também é
proibido. Mas um grupo secreto está agindo fora da lei, e está plantando
maconha, fazendo o remédio e distribuindo de graça a mães que já não sabem mais
o que fazer para ajudar os filhos doentes.
A reunião é clandestina. Todos no grupo escondem o rosto, não revelam o
nome, porque sabem os riscos de agir na ilegalidade. O motivo são estufas
caseiras: cada um deles tem seu cultivo próprio de maconha.
Os encontros rotineiros já serviram só para trocar ideias sobre o
plantio, mas, há pouco mais de oito meses, o assunto ficou sério. Os amigos
decidiram que a plantação de maconha podia virar uma fonte de remédios
artesanais.
“A gente sabe do risco que corre, mas a gente tem que enfrentar”, diz um
dos jovens do grupo.
Era o começo de uma rede clandestina de produção e distribuição de
substâncias proibidas no Brasil, mas que podem mudar histórias de muita gente.
Clárian, em São Paulo, está na outra ponta da rede clandestina. A filha
caçula do Fábio e da Aparecida nasceu com Síndrome de Dravet, uma doença rara
que provoca crises graves de epilepsia e afeta o desenvolvimento do cérebro.
“Ela não tinha ânimo nenhum para brincar. E fora isso quando tentávamos
levar ela em um parque alguma coisa, ela tinha crises convulsivas porque ela
não podia se expor ao sol, ela não podia fazer esforço físico”, conta Maria
Aparecida de Carvalho, mãe da Clárian.
Desde os primeiros anos de vida, convulsões quase diárias e 17
internações na UTI. “A Clárian já teve algumas paradas respiratórias,
cardiorrespiratórias. Já vimos, assim, a morte perto da minha filha várias
vezes”, lembra a mãe da menina.
Os médicos tentaram vários remédios, mas nenhum trouxe qualidade de
vida.
A mudança começou com gotinhas diárias. O remédio é o Canabidiol, ou
CBD, uma das substâncias presentes na maconha. E, diferente da droga fumada, o
extrato de CBD não altera os sentidos, ou seja, não dá barato e não provoca
dependência.
O Canabidiol não é vendido legalmente no Brasil. Precisa ser importado,
e só com a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Em São Paulo, Fábio e Cida chegaram a importar CBD ilegalmente dos
Estados Unidos. Pagaram US$ 500, mais de R$ 1,2 mil, por um frasco do remédio.
A importação com autorização da Anvisa ficaria ainda mais cara, por causa dos
impostos e gastos com despachantes.
“Isso ia alavancar o custo para R$ 8 mil. Foi aí que nós começamos a
usar o óleo, o derivado do CBD artesanal”, conta Fábio Carvalho, pai de
Clárian.
O óleo que Clárian está tomando atualmente vem da rede clandestina de
cultivadores cariocas e não custa nem R$ 1. “Não existe nenhum fim comercial
relacionado a esse tipo de prática, a questão é mesmo de solidariedade, de
auxílio a outras pessoas”, afirma um dos jovens do grupo.
A produção é caseira. As flores colhidas são trituradas com gelo seco em
um pote ou em um saco de lona. Esses dois processos artesanais dão origem a uma
quantidade de extrato da cannabis, que é matéria prima para a confecção do
medicamento. Essa base é suficiente para produzir 20 vidrinhos de 25 ml, que
garante um ano de tratamento a um paciente.
Quem ajuda a preparar é um médico, estudioso do uso medicinal da
maconha. “Minha assessoria é principalmente na transmissão de informação, de
conhecimento, sobre as melhores práticas, a melhor forma de se fazer o produto
a um grau medicinal, com o menor nível de contaminação possível, e mais
eficiente possível para os pacientes”, afirma.
Ele reconhece que ainda não existem pesquisas que expliquem os
mecanismos de ação ou a dosagem apropriada de cada remédio. “É uma medicina
diferente da medicina tradicional, é uma medicina de observação. Tem que
encontrar a dosagem certa para ele, principalmente a dosagem que não cause
efeitos adversos pra ele, como perturbação do sono, aceleração e ao mesmo tempo
consiga se beneficiar em relação a patologia dele”, explica.
“Estamos buscando sozinhos, nós mães, observacionalmente, por isso que é
necessária a regulamentação”, afirma a mãe de Clárian.
O desespero e a
esperança de controle dos sintomas da doença também podem levar a situações bem
perigosas, como por exemplo, o preparo do Canabidiol em casa, sem nenhuma
orientação médica. Essas pessoas aprendem, na prática, que o uso do CBD
artesanal, preparado de forma inadequada, pode provocar efeitos colaterais.
Os ataques de epilepsia tornaram a vida de Miguel, de 5 anos, um risco
constante. O menino de Curitiba é autista e tem uma doença no sistema de defesa
do organismo que já chegou a provocar 30 convulsões por dia. Depois de tentar
20 medicamentos diferentes, sem resultado, a mãe pesquisou na internet como
produzir o óleo de Canabidiol em casa.
“Eu descobri num site americano,
em um artigo americano, um médico falando que existiam várias formas e que a
forma menos tóxica, no caso para quem não tinha muito conhecimento de fazer,
seria no azeite de oliva. Plantar dentro do azeite de oliva, em banho-Maria”,
afirma Priscila Dumas Inocente, mãe de Miguel.
Ela ficou assustada com os
efeitos. “Eu senti que ele relaxou. Ele começou a assistir o desenho dele e os
olhos ficaram levemente avermelhados. Foi o efeito colateral que eu senti. A
gente deu por mais dois dias, mas eu fiquei com medo. Falei: ‘Será que estou
fazendo certo?’”, lembra.
O psiquiatra José Alexandre
Crippa, da Universidade de São Paulo, é um dos maiores estudiosos do Brasil de
canabinóides, ou seja, as substâncias encontradas na maconha. E faz um alerta:
a produção caseira de medicamentos à base de CBD, como a da rede do Rio, não é
segura. “Se fosse meu filho, eu não daria, eu buscaria certamente um Canabidiol
com máximo de pureza, e existe no exterior, e existem mecanismos de buscar
isso, mesmo dentro do nosso país. E a gente acredita que o Canabidiol é uma
medicação. Ele não é maconha. Ele não é um droga. Saber sua dose, saber sua
quantidade, isso é fundamental para que haja uma segurança e o paciente possa
se beneficiar dos canabinóides como medicamento”, afirma o psiquiatra da USP.
Crippa explica que o CBD nunca vem
puro, contém sempre alguma quantidade de THC, o composto que provoca as alterações
dos sentidos, o barato. E aí está o perigo.
Toda cepa, ou tipo diferente de
maconha, contém em maior ou menor grau CBD e THC. Por isso, dependendo da
planta usada, e do modo de preparo, o óleo medicinal pode ser mais rico em
Canabidiol ou em THC. As duas substâncias têm propriedades muito diferentes, e
podem ser usadas no tratamento de doenças distintas.
“Dependendo da dose de THC, o THC
pode permanecer por até três meses no cérebro dessa criança. Além disso,
sabe-se que o uso regular nessa fase da vida, especialmente, pode aumentar em
até 400% o desenvolvimento de alguns transtornos psiquiátricos”, afirma o
psiquiatra José Alexandre Crippa.
Apesar dessas ressalvas
importantes, alguns remédios à base de THC, produzidos em laboratórios fora do
Brasil, têm funcionado para aliviar dores crônicas e náuseas decorrentes da
quimioterapia.
É com THC que Gilberto tenta
diminuir os sintomas da esclerose múltipla, outra doença para a qual a
substância pode trazer algum benefício. Há três meses, Gilberto passou a usar
um óleo artesanal rico em THC, fornecido pela rede clandestina de cultivadores
do Rio.
“Ela me ajuda com as sensações da
esclerose múltipla, das dores que eu tenho o tempo todo”, conta Gilberto Elias
Castro, designer.
Mais de 20 países já autorizam o
comércio de remédios à base de maconha, incluindo alguns estados americanos,
Inglaterra, Israel e o Uruguai. O Brasil está fora desta lista.
Por aqui, importar já é possível,
mas a Anvisa impõe várias exigências ao laudo médico, entre elas a comprovação
de que o paciente pode morrer sem o medicamento. O Conselho Regional de
Medicina de São Paulo autoriza a prescrição de Canabidiol apenas para crianças
com algumas doenças específicas.
No fim do mês passado, a Comissão
de Constituição e Justiça do Senado aprovou uma proposta de lei que pode
facilitar a importação de derivados da maconha para uso medicinal. O texto
ainda não tem data para votação.
Por enquanto, para a legislação
brasileira, a atividade da rede de cultivadores é crime, assim como a
importação ilegal do medicamento feita por muitos pais.
“Quem planta, quem importa
substancia entorpecente, mesmo para criar um medicamento, em tese estaria em
curso nas penas do crime de tráfico, em uma conduta equiparada ao tráfico. Mas
há ainda um outro crime punido com pena muito mais grave, que é o crime de
vender, ceder, ainda que gratuitamente, ter em depósito, fabricar produto
medicamentoso sem registro na Anvisa, punido com a pena mínima de 10 anos, que
é o dobro da pena mínima do tráfico”, afirma Paulo Freitas, advogado
criminalista.
“O que é crime maior? Você
traficar por amor ou você deixar alguém morrer, ter 20 ou 30 crises em um
dia?”, pergunta um dos jovens do grupo.
Mas o criminalista diz que a lei
também prevê recursos para casos como os das pessoas que participam da rede de
CBD. “Existe uma figura no direito penal chamada 'estado de necessidade'.
Então, por exemplo, uma mãe que importa para o filho esse medicamento, porque
não tem outra forma de trazer esse medicamento, que efetivamente traz
benefícios à saúde dessa criança, evidentemente que ela não pode ser punida. Se
esse medicamento, feito à base do que for, é efetivamente benéfico à saúde dos
que sofrem gravemente, severamente, o Estado tem que tomar uma atitude. O Estado
tem que regulamentar isso. Esse produto é bom ou não é bom? É lícito ou não é
lícito?”, destaca Paulo Freitas.
“Ilegal, na minha opinião, do
jeito que está, é me privar de eu dar uma condição de vida melhor para a minha
filha. Isso eu acho ilegal”, lamenta o pai de Clárian.
“As pessoas têm que olhar e
perguntar, tentar viver um pouco daquilo antes de julgar. Antes de condenar. Se
ela está dando o artesanal, se ela está dando o comprado. Está fazendo bem?
Amém”, ressalta a mãe de Miguel.
No universo de quem descobriu um
caminho para superar o pesadelo da doença, enfrentar todos os riscos pode
significar, simplesmente, levar uma vida normal. “Os espasmos diminuíram
significativamente. Ela melhorou no equilíbrio, ela melhorou no cognitivo. Ela
está mais ativa, mais espontânea. Eu fui na reunião de escola, da escola dela e
a professora falou: ‘Mãe, de três meses para cá, a Clárian é outra criança’.
Isso me encheu de alegria”, comemora a mãe da Clárian.
Confira a reportagem:
Fonte: Fantástico - GLOBO